inviável

todo o mundo sabe que sou

cronicamente invivível

nunca sou uma coisa ou outra

das infinitas binárias alternativas

da vida

não sou do campo e nem da cidade

não sou do mar e nem da secura

não sou zen nem sou sintética

não faço yoga

só gosto de brincar com os cachorros

e gostava, com aqueles que doei

e inclusive com os que me devolveram

não sou branca e nem preta

nos insistentes formulários

dos racistas e os das cotas raciais

não sou boa nem má

faço o máximo que sou capaz

pra poder viver em paz

e poder trepar

se possível

e poder gozar

se for possível também

não estou certa sobre a democracia

e nem sobre as soluções em vigor

sobre as negociações, os orgulhos

e as ferozes manifestações que curto

nas redes sociais

eu só sei do meu coração

e não peçam a minha opinião

meus eu achos só se localizam

de acordo com a pergunta e o perguntador

gosta de calor? gosto! não gosto!

minha opinião não importa nada

e muito menos traduz algo que eu

possa ser ontologicamente

não tem essência, astrologia

nenhum álibi para minhas idiotices

enquanto gritam comigo eu sinto saudades

enquanto silenciam eu saio gritando feito louca

talvez sejam meus únicos lugares no mundo

cansaço e saudade

grito e dúvida

vazio cheio

que fim pode ter uma vulgar e pretensiosa flor

que tem como família apenas a tristeza exausta

e a obsessão por contar e ouvir

as histórias que poderiam ter sido?

Clara Cuevas, março de 2014

amor infinito

admito

estou curada

do amor infinito.

setembro/2007

acatassem

quem foi que disse?

pois pode mandar desdizer

eu só ataquei porque

estavam acatando o pior dos mundos

o mais horrível e inimaginável mundo real

quando vi estavam aqueles humanóides todos

e seus medos e suas trapaças e seus silêncios

e seu conservadorismo fedendo a qualquer coisa

em conserva e estragada

eu tive que evitar isso eu tive que

tentar evitar isso

eu ataquei

que conste por aí

eu só ataquei

eu tive que atacar

e ataquei mesmo

antes que eles

acatassem.

Clara Cuevas, outubro de 2013

o tio brasil

o Brasil é primo do meu pai, primo do meio, mais velho o suficiente pra ter autoridade, mais jovem o suficiente pra ser o mais mimado pela mãe. nunca foi religioso mas tem toda  a moral cristã na ponta da língua na hora de julgar os demais. umas vez quis fazer meu primo, seu segundo filho, virar homem na cinta porque o viu sorrindo demais para um coleguinha da escola. foi o meu tio também que, em uma época que inventou de virar pastor, chamou o bairro todo pra ver o exorcismo que iria tirar o demônio da homossexualidade do filho dele. hoje em dia é apenas um tio velho e vizinho-perto-demais que às vezes visita minha casa, às vezes chega bêbado e violento, às vezes puxando conversa tentando estabelecer um mínimo de empatia ao redor.

antigamente ele batia na mulher e fazia piada racista o tempo todo. tenho uma memória ruim de minha infância com ele, mas é uma memória deveras embaçada para que eu possa estabelecer algum crime ou criminoso. só sei que é uma pessoa que me deixa incomodada e que sei que não posso confiar. quando vem com carinho, elogio e privilégio eu já fico longe e vou pra cozinha fazer qualquer coisa. o tio não é de todo ruim, apesar do machismo e da violência, criou razoavelmente seus filhos – o mínimo que um ser minimamente pai faz – e depois de agredir a mulher até ela praticamente desaparecer do mundo de tanto medo, hoje tenta uma vida menos ridícula. mas não consegue. parece que a falta de auto-estima e a necessidade autoritária de aparecer é maior do que qualquer possibilidade de boa mudança. ele ainda mexe com as meninas do bairro e vez ou outra ainda briga com os outros por porcaria. da penúltima vez levou uma facada na barriga e pra mudar a situação agora anda armado.

ontem foi à marcha nacional pela volta dos militares ao poder e quando alguns conhecidos da família o viram com aquela típica cara vermelha dele cheia de furinhos, com tinta verde e amarela na testa gritando o hino, perguntaram pra mim se eu o conhecia e eu ainda tive que dizer com uma vergonha quase culpada olhando pra baixo pensando, que diabos é esse vínculo completamente absurdo que eu nem sei de onde vem e por que precisa vir, levantei a cabeça sem olhar nos olhos e respondi contrariada com um suspiro ruim, o Brasil? sim, é meu tio.

Clara Cuevas, setembro de 2013

crônica de ontem no ônibus

às vezes eu cansava de não ter pra onde ir e fazia que ia pra algum lugar. olhe para as pessoas na rua, estão sempre indo pra algum lugar, algum compromisso inadiável, um horário marcado, um café, um banco, uma conta, um filho, todos estão indo para algum destino e não importa de onde essa gente vêm. pessoas estão sempre indo, menos eu, e talvez isso me faça menos pessoa. às vezes eu acordava muito triste e depois de juntar uns trocados eu pegava um ônibus, mantinha a postura ereta e subia em algum ligeirinho da praça tiradentes. você pode achar que é só subir em um ônibus que vai que, de repente, você já é uma pessoa que está indo, mas não é bem assim, pessoas que vão sempre têm alguma coisa na mão, uma bolsa, mochila, blusa, celular, eu por sorte tinha uns trapos dentro de uma mochila cor-de-rosa que ganhei no abrigo uma vez, enfiei tudo ali e carregava nas mãos a mochila, ansioso por estar indo, olhava pros pontos de ônibus, pras pessoas, pras ruas, e fazia cara de quem queria chegar, eu realmente sei fazer cara de alguém que está indo a algum lugar, olhei pro pulso mesmo sem nenhum relógio, o importante é que o lugar onde se chega está sempre associado ao tempo que se demora, que pode ser muito ou pouco. como eu queria chegar logo em algum lugar eu não podia esconder minha ansiedade, apertava a alça da mochila esfregando as alças rosas com as mãos sujas, qualquer pessoa que olhasse pra mim sabia que eu estava indo, cheguei no terminal, quase perdi o ponto! a porta fechou antes de eu sair, eu estava muito distraído no indo, gritei “seu motorista, por favor, preciso descer”, e ele abriu a porta contrariado, ouvi um homem sussurrando atrás de mim sentado “canalha vagabundo, a porta já estava aberta há cinco minutos”, eu desci orgulhoso mesmo assim, coloquei a mochila nas costas e corri pra pegar o outro ônibus que ia para algum lugar que eu não fazia ideia, o que me importava é que eu estava integrado ali neste viver-indo das pessoas que estão sempre correndo nalgum destino, é uma sensação muito boa, estar alinhado a esse fluxo de vida, de cidade, de mundo, já eram seis da tarde e cinco ônibus depois eu decidi estar indo novamente “pra casa” que era a praça da cidade, a paisagem dos passantes, a passagem daqueles que estão sempre indo, eu voltei e dormi no ponto de taxi, mas feliz por ter ido um pouco, vocês não sabem o valor que a ida tem. aquele dia eu pude dormir mais tranquilo e feliz por toda emoção e ansiedade de ter ido e voltado. deus me livre viver parado no asfalto, mendigo já é cinza, se eu não me movimento me confundem com o cimento. mas aquele dia foi muito bom ter conseguido fazer isso. ninguém reparou que eu não tinha pra onde ir, eu quase me atrasei várias vezes, ainda dei trabalho pro motorista, viajei pela cidade inteira… e olha que a passagem tá 2,85.

Clara Cuevas, maio de 2013

prótese protesto

arranca a perna
levanta a muleta
grita por la revolución

o preço do corpo
é um apreço
que se paga por proteção

levanta a mão e  quebra tudo

samba na cara da austeridade

o que não é prótese  é propriedade.

Clara Cuevas, março de 2013

aquilo que dali virá

um dia eu disse que não.

pesava mais que um quilo

e menos que um coração.

Clara Cuevas, fevereiro de 2013

não me fotografe

nós temos um sério problema de comunicação, você aperta 55 e eu apareço pi, você diz bom dia e eu pergunto onde estão os pratos? eu não sei fazer cara de nada, o que é o nada? e nada do que você me diga ou aponte vai fazer eu sair bem, pode estar um dia lindo que sairei sempre nublada, o pão sairá sempre mais queimado que o desejável e nunca ficará bom, foi assim desde a primeira vez e sempre será, seu olhar me oprime. eu prefiro aquelas máquinas ruins em que todo o mundo sai razoável a ser testada pela minuciosa lente que tudo apreende, que apreende todo meu mal-estar, todo meu ai meu deus de novo não, eu tenho a alma tímida e torta demais pra ser imagem, eu não sei como agir pra ser registrada, meu sorriso é um avesso e meus olhos são ainda pior, estou posando sempre ao contrário e já lamentando o incômodo que dali virá, por favor, sou grave demais para gravações. sou o maracatu em romeno da fotografia, o grafite da geleia, a anágua da sereia, a preguiça da primeira guerra mundial, não me fotografe, eu sou uma gafe, por favor, não me fotografe.

Clara Cuevas, fevereiro de 2013

a filosofia

o suicida é sempre um detentor, um doutor, um pedreiro, ele é um triunfante perdedor,  um pobre vencedor, um verdureiro. o suicida é sempre fatal, ele é quem leva tudo à morte, a morte nem se mexe, fica lá em seu cadeirão tecendo qualquer coisa. do caminho de casa para o trabalho ele morre oitenta e oito vezes, sua política é mortal, está sempre saltando elástico na espessura mínima da existência, ele recusa a vender sua vida, mas aluga se pagar bem, ou não também. ele acorda, ele levanta, ele deita, ele muda de posição pro sol não bater no rosto, ele caminha até o banheiro, seu café é de qualquer tipo, assim como sua sexualidade, ele anuncia todo dia um bom dia que não necessariamente será um dia bom, pela janela ele se defenestra duas vezes enquanto só passou pela porta. ele liga um ônibus, um carro, ele anda de bicicleta, ele é um motorista da própria vida, um condutor, dizem, que conduz. ele vai pro trabalho, ele faz QUALQUER coisa, ele enfeita as flores de uma coroa do funeral de uma pessoa qualquer, ele sorri recepcionista, procrastina no escritório da paciência, ele reprovou seis alunos nos últimos oito anos, ele tem umas cinco paixões mal curadas, sua vida é um próprio risco iminente, há de se estar morto para vivê-la. o suicida é principalmente um ator, um fingidor que “finge ser dor a dor que realmente sente” e ainda acha graça, ele é um herói, oras, ele é um herói de si mesmo, só um herói levanta  da cama todos os dias depois dos seis anos de idade. o suicida é principalmente alguém que vai pra casa, alguém que lembra que deixou o computador ligado, que não terminou o francês, o suicida é um fugidor da fila do supermercado, ele compra sempre a mesma margarina, a não ser que queira comer pão sem morte, ele é alguém que tem três tipos de doenças congênitas mas que nunca fará os exames que o condenariam, o suicida é, sem dúvida, aquele que beija a filha, que olha atento pela janela tentando ouvir o fuxico dos vizinhos, ele é alguém que morre todos os dias, em cada café, em cada orgasmo, uma pequena morte. o suicida é aquele que não sente falta das células que morrem e se renovam todos os dias e que formam, neste circo de movimentos, seu corpo. o suicida come rolmops, o suicida não é um conservador, ele é, antes de mais nada, aquele que te cumprimenta num domingo a tarde, ele é alguém que ajuda, ele é alguém que vota errado, que sabe que política adoece, azeda e faz mal. ele toca flauta com a coluna vertebral de cada um de seus antepassados (e depois joga fora), ele é alguém que, sem sombra de dúvidas, duvida e se jogará fora em uma aposta, ele é alguém que canta, que se abstém da própria vida, ele é aquele que pediu benção pra mãe, que vê televisão aberta entediado, ele é aquele que foi no show dos titãs em 1986, ele é quem se recusa, mas consente, ele é aquele que tem as mãos mais macias e a voz mais doce, às vezes grave, às vezes vazio, ele é aquele vizinho querido, aquela menina que nossa não acredito, mas ela nunca demonstrou nada, é aquele homem que numa terça-feira desceu a calçada, que lembrou de um certo coração partido, ele é aquele que foi promovido, que começou tímido um certo otimismo, ele é aquele que ia no cinema na estreia, mas não apareceu porque no justo momento em que exerceu seu passo adiante para a vida, qualquer coisa em sua mão ou em sua vontade incessante encostou suas entranhas pelo avesso e fez BUUMMM!

Clara Cuevas, outubro de 2012

poema para um amigo

ruy,

não deixe que a laranja

seja mais selvagem

que o coração

largue desse caixa,

dessa gramática

e dessa paixão

vamos andar pela ilha

como o conto de fadas,

de mãos dadas,

joão e joão.

Clara Cuevas, julho de 2012.