Cantiga Piauiense Para Lena Rios

Sempre andei por um caminho
Que não conhecia bem;
Sequer me lembro se vinha
Sozinha, ou se com alguém
E nem sei se aqui chegada
Faço morada, me aquieto
Pois é certo que procuro
Algo que deve nadar perto:
Mas o que vejo é incerto
E o que consigo não dura.
(Eu sempre quis outra vida
Eu sempre quis ser feliz,
Por isso naquele tempo
Fiz minha mala e parti)
Sempre andei por um caminho
Que não sabia direito;
Do que perdi na viagem
Já me esqueci por completo
Não guardei nada e o que trouxe
Eram apenas utensílios
De fácil desprendimento:
Dois filhos que nunca tive
Um velho anel de família
E uma saudade no peito.
(Eu sempre quis outra vida
Eu sempre quis ser feliz:
Dos dois filhos, da saudade
E até do anel me desfiz).
Sempre andei por um caminho
Que não tem ponto final
E a paisagem que eu via
Era toda e sempre igual:
Depois da noite outro dia
Com suas mesmas desgraças,
Mas também algumas casas
Com jantar posto na mesa.
Agora:
EU SEMPRE QUIS SER CONTENTE
E PODE SER QUE EU SEJA.

poema de Torquato Neto, Torquato Neto Essencial, Ítalo Moriconi,(Org.), 2017, pp. 76,77.

A menina de lá

Sua casa ficava para trás da Serra do Mim, quase no meio de um brejo de água limpa, lugar chamado o Temor-de-Deus. O Pai, pequeno sitiante, lidava com vacas e arroz; a Mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da mão, mesmo quando matando galinhas ou passando descompostura em alguém. E ela, menininha, por nome Maria, Nhinhinha dita, nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes.

Não que parecesse olhar ou enxergar de propósito. Parava quieta, não queria bruxas de pano, brinquedo nenhum, sempre sentadinha onde se achasse, pouco se mexia. – “Ninguém entende muita coisa que ela fala…” – dizia o Pai, com certo espanto. Menos pela estranhez das palavras, pois só em raro ela perguntava, por exemplo: – “Ele xurugou?” – e, vai ver, quem e o quê, jamais se saberia. Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. Com riso imprevisto: – “Tatu não vê a lua…” – ela falasse. Ou referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; ou da precisão de se fazer lista das coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida. Em geral, porém, Nhinhinha, com seus nem quatro anos, não incomodava ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, imobilidade e silêncios. Nem parecia gostar ou desgostar especialmente de coisa ou pessoa nenhuma. Botavam para ela a comida, ela continuava sentada, o prato de folha no colo, comia logo a carne ou o ovo, os torresmos, o do que fosse mais gostoso e atraente, e ia consumindo depois o resto, feijão, angu, ou arroz, abóbora, com artística lentidão. De vê-la tão perpétua e imperturbada, a gente se assustava de repente. – “Nhinhinha, que é que você está fazendo?” – perguntava-se. E ela respondia, alongada, sorrida, moduladamente: – “Eu… to-u… fa-a-zendo”. Fazia vácuos. Seria mesmo seu tanto tolinha?

Nada a intimidava. Ouvia o Pai querendo que a Mãe coasse um café forte, e comentava, se sorrindo: – “Menino pidão… Menino pidão…” Costumava também dirigir-se à Mãe desse jeito: – “Menina grande… Menina grande…” Com isso Pai e Mãe davam de zangar-se. Em vão. Nhinhinha murmurava só: – “Deixa… Deixa…” – suasibilíssima, inábil como uma flor. O mesmo dizia quando vinham chamá-la para qualquer novidade, dessas de entusiasmar adultos e crianças. Não se importava com os acontecimentos. Tranqüila, mas viçosa em saúde. Ninguém tinha real poder sobre ela, não se sabiam suas preferências. Como puni-la? E, baterlhe, não ousassem; nem havia motivo. Mas, o respeito que tinha por Mãe e Pai, parecia mais uma engraças espécie de tolerância. E Nhinhinha gostava de mim.

Conversávamos, agora. Ela apreciava o casacão da noite. – “Cheiinhas!” – olhava as estrelas, deléveis, sobrehumanas. Chamava-as de “estrelinhas pia-pia”. Repetia: – “Tudo nascendo!” – essa sua exclamação dileta, em muitas ocasiões, com o deferir de um sorriso. E o ar. Dizia que o ar estava com cheiro de lembrança. – “A gente não vê quando o vento se acaba…” Estava no quintal, vestidinha de amarelo. O que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: – “Alturas de urubuir…” Não, dissera só: – “… altura de urubu não ir.” O dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de: – “Jabuticaba de vem-mever…” Suspirava, depois: – “Eu quero ir para lá.” – Aonde? – “Não sei” Aí, observou: – “O passarinho desapareceu de cantar…” De fato, o passarinho tinha estado cantando, e, no escorregar do tempo, eu pensava que não estivesse ouvindo; agora, ele se interrompera. Eu disse: – “A Avezinha.” De por diante, Nhinhinha passou a chamar o sabiá de “Senhora Vizinha…” E tinha respostas mais longas: – “Eeu? Tou fazendo saudade.” Outra hora falava-se de parentes já mortos, ela riu: – “Vou visitar eles…” Ralhei, dei conselhos, disse que ela estava com a lua. Olhou-me, zombaz, seus olhos muito perspectivos: – “Ele te xurugou?” Nunca mais vi Nhinhinha.

Sei, porém, que foi por aí que ela começou a fazer milagres.

Nem Mãe nem Pai acharam logo a maravilha, repentina. Mas Tiantônia. Parece que foi de manhã. Nhinhinha, só, sentada, olhando o nada diante das pessoas: – “Eu queria o sapo vir aqui”. Se bem a ouviram, pensaram fosse um patranhar, o de seus disparates, de sempre. Tiantônia, por vezo, acenou-lhe com o dedo. Mas, aí, reto, aos pulinhos, o ser entrava na sala, para aos pés de Nhinhinha – e não o sapo de papo, mas uma bela rã brejeira, vinda do verduroso, a rã verdíssima. Visita dessas jamais acontecera. E ela riu: – “Está trabalhando um feitiço…” Os outros se pasmaram; silenciaram demais.

Dias depois, com o mesmo sossego: – “Eu queria uma pamonhinha de goiabada” – sussurrou; e, nem bem meia hora, chegou uma dona, de longe, que trazia os pãezinhos da goiabada enrolada na palha. Aquilo, quem entendia? Nem os outros prodígios, que vieram se seguindo. O que ela queria, que falava, súbito acontecia. Só que queria muito pouco, e sempre as coisas levianas e descuidosas, o que não põe nem quita. Assim, quando a Mãe adoeceu de dores, que eram de nenhum remédio, não houve fazer com que Nhinhinha lhe falasse a cura. Sorria apenas, segredando seu – “Deixa… Deixa…” – não a podiam despersuadir. Mas veio vagarosa, abraçou a Mãe e a beijou , quentinha. A Mãe, que a olhava com estarrecida fé, sarou-se então, num minuto. Souberam que ela tinha também outros modos.

Decidiram de guardar segredo. Não viessem ali os curiosos, gente maldosa e interesseira, com escândalos. Ou os padres, o bispo, quisessem tomar conta da menina, levá-la para sério convento. Ninguém, nem os parentes de mais perto, devia saber. Também, o Pai, Tiantônia e a Mãe, nem queria versar conversas, sentiam um medo extraordinário da coisa. Achavam ilusão.

O que ao Pai, aos poucos, pegava a aborrecer, era que de tudo não se tirasse o sensato proveito. Veio a seca, maior, até o brejo ameaçava se estorricar. Experimentaram pedir a Nhinhinha: que quisesse a chuva. – “Mas, não pode, ué…” – ela sacudiu a cabecinha. Instaram-na: que, se não, se acabava tudo, o leito, o arroz, a carne, os doces, frutas, o melado. – “Deixa… Deixa…” – se sorria, repousada, chegou a fechar os olhos, ao insistirem, no súbito adormecer das andorinhas.

Daí a duas manhãs quis: queria o arco-íris. Choveu. E logo aparecia o arco-da-velha, sobressaído em verde e o vermelho – que era mais um vivo cor-de-rosa. Nhinhinha se alegrou, fora do sério, à tarde do dia, com a refrescação. Fez o que nunca lhe vira, pular e correr por casa e quintal. –

“Adivinhou passarinho verde?” – Pai e Mãe se perguntavam. Esses, os passarinhos, cantavam, deputados de um reino. Mas houve que, a certo momento, Tiantônia repreendesse a menina, muito brava, muito forte, sem usos, até a Mãe e o Pai não entenderam aquilo, não gostaram. E Nhinhinha, branda, tornou a ficar sentadinha, inalterada que nem se sonhasse, ainda mais imóvel, com seu passarinho-verde pensamento. Pai e Mãe cochichavam, contentes: que, quando ela crescesse e tomasse juízo, ia poder ajudar muito a eles, conforme à Providência decerto prazia que fosse.

E, vai, Nhinhinha adoeceu e morreu. Diz-se que da má água desses ares. Todos os vivos atos se passam longe demais.

Desabado aquele feito, houve muitas diversas dores, de todos, dos de casa: um de-repente enorme. A Mãe, o Pai e Tiantônia davam conta de que era a mesma coisa que se cada um deles tivesse morrido por metade. E mais para repassar o coração, de se ver quando a Mãe desfiava o terço, mas em vez das ave-marias podendo só gemer aquilo de – “Menina grande… Menina grande…” – com toda ferocidade. E o Pai alisava com as mãos o tamboretinho em que Nhinhinha se sentava tanto, e em que ele mesmo se sentar não podia, que com o peso de seu corpo de homem o tamboretinho se quebrava.

Agora, precisavam de mandar um recado, ao arraial, para fazerem o caixão e aprontarem o enterro, com acompanhantes de virgens e anjos. Aí, Tiantônia tomou coragem, carecia de contar: que, naquele dia, do arco-íris da chuva, do passarinho, Nhinhinha tinha falado despropositado de satino, por isso com ela ralhara. O que fora: que queria um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites de verdes brilhantes… A agouraria! Agora, era para se encomendar o caixãozinho assim, sua vontade?

O Pai, em bruscas lágrimas, esbravejou: que não! Ah, que, se consentisse nisso, era como tomar culpa, estar ajudando ainda Nhinhinha a morrer…

A Mãe queria, ela começou a discutir com o Pai. Mas, no mais choro, se serenou – o sorriso tão bom, tão grande – suspensão num pensamento: que não era preciso encomendar, nem explicar, pois havia de sair bem assim, do jeito, cor-de-rosa com verdes funebrilhos, porque era, tinha de ser! – pelo milagre, o de sua filhinha em glória, Santa Nhinhinha.

João Guimarães Rosa – Primeiras Estórias, 2005.

Marginália II

Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu pecado
Meu sonho desesperado
Meu bem guardado segredo
Minha aflição

Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu degredo
Pão seco de cada dia
Tropical melancolia
Negra solidão

Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo

Aqui, o Terceiro Mundo
Pede a bênção e vai dormir
Entre cascatas, palmeiras
Araçás e bananeiras
Ao canto da juriti

Aqui, meu pânico e glória
Aqui, meu laço e cadeia
Conheço bem minha história
Começa na lua cheia
E termina antes do fim

Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo

Minha terra tem palmeiras
Onde sopra o vento forte
Da fome, do medo e muito
Principalmente da morte
Olelê, lalá

A bomba explode lá fora
E agora, o que vou temer?
Oh, yes, nós temos banana
Até pra dar e vender
Olelê, lalá

Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo

Torquato Neto

Um beijo
que tivesse um blue.
Isto é
imitasse feliz a delicadeza, a sua,
assim como um tropeço
que mergulha surdamente
no reino expresso
do prazer.
Espio sem um ai
as evoluções do teu confronto
à minha sombra
desde a escolha
debruçada no menu;
um peixe grelhado
um namorado
uma água
sem gás
de decolagem:
leitor embevecido
talvez ensurdecido
“ao sucesso”
diria meu censor
“à escuta”
diria meu amor.


Ana Cristina Cesar, em “Poética”. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

NADA EN PROPIEDAD

Nada en propiedad, todo prestado.
Estoy empeñada hasta el cuello.
Tendré que liquidar la deuda
entregándome a mí misma.

Así está establecido:
devolver el corazón,
devolver el hígado,
y cada uno de los dedos.

Es tarde para cambiar las cláusulas del contrato.
Me harán pagar la deuda
junto con mi piel.

Ando por un mundo repleto de deudores.
Sobre unos pesa
el  embargo de las alas.
Otros, quieran o no,
declararán las hojas.

Cada tejido nuestro
está en el Debe.
Ni una pestaña, ni una ramita
podrá ser conservada para siempre.

Hasta el último detalle está inventariado,
y todo parece indicar
que hemos de quedarnos sin nada.

No logro recordar
dónde, cuándo y para qué
permití que me abrieran
esta cuenta.

La protesta contra eso
es lo que llamamos alma.
Y es esto lo único
que no está en el inventario.

Wislawa Szymborska, El gran número / Fin y principio y otros poemas. Hiperión, Madrid, 1997.

por quê não deixa de escrever e passa a dizer tchau?

Seleção de poemas de Adília Lopes

O homem e a mulher
deixarão pai e mãe
para serem
uma só carne,
mas por causa
do assado queimado
descompõem-se
cospem um no outro
fazem as malas
e a mulher volta
para casa
da mãe
e o homem corre
para uma antiga mulher
que o recebe
de braços abertos
agora há só dois bebês
a berrar por Super Maxs
à porta de uma pastelaria
de Beja
com o ar condicionado
avariado.
(LOPES, 2014, p. 425)

Milly chéri
tenho coisas
para te dizer
de viva voz
cartas de amor
nunca mais
agora só escrevo
cartas comerciais

Não quero
ter filhos
gosto muito
de foder
contigo
e com outros,
mas de bebês
não gosto
uma vez
por outra
tem graça,
mas sempre
não
os bebês deprimem-me
se engravidar
faço abortos
por muito
que me custe
e custa-me
muito
(um bebê é dom
do Espírito Santo)

Ficas
no castelo de Beja
e eu aqui
no convento
com vento
(as janelas
fecham mal,
estão empenadas)
há uma passagem
subterrânea
como nos romances
que liga
castelo e convento
o outro é o Céu
com peúgas
e cuecas sujas

Antes de chegares
pensava assim
mesmo que Milly volte
não quero foder
o feitio das unhas dos pés
e a implantação dos cabelos
na nuca
do meu Milly chéri
mais tarde
ou mais cedo
vão-me meter nojo
nunca mais danço

nunca mais dou beijos,
mas quem não pensa
em foder
está fodido,
mas agora
quero foder contigo

Portanto Milly chéri
és muito bem vindo
a mulher (eu)
deixa
pai e mãe
e apega-se
ao homem (tu)
e são ambos
uma carne.
(LOPES, 2014, p. 435)

É preciso pensar
em tudo
dos preservativos
às panelas
e há mesmo quem
nos preservativos
veja já as panelas
pensa-se demais
e não se pensa
de facto.
(LOPES, 2014, p. 388)

(O vinho que bebo
contigo à noite
o doce que me deste
de manhã
as esplanadas desertas
e o rock
andar contigo
é tão bom)
Nunca tive
um namorado
e quero ter,
mas o namorado
que não tenho
e os filhos que não tenho
e que quero ter
podem não me acontecer
nunca
(LOPES, 2014, p. 207)

Só depois de ler
Barthes
que Camila ficou a saber
que o dedo da masturbação
o médio
até aí tinha usado
sempre
indicador experimentou também
polegar
e viu que todos serviam
meu menino
seu vizinho
pai de todos
fura bolos
mata piolhos
depois de perder a virgindade
experimentou
com um tubo de Cecresina
metido num Durex Gossamer
também servia,
mas isto nada
tem a ver com o amor
tem a ver com o escrever
e com o pintar
e dá menos satisfação
a menos que Camila
se lembre de Jénia
e da penetração
então usa
só os dedos
e serve
para adormecer.
(LOPES, 2014, p. 395)

2
Por quê não deixa de escrever
e passa a dizer Tchau?


(…)


4
Tenho 32 anos
nunca fui a um enterro
e tambem nunca fui
ao Algarve


5
Se o bom verso
como o bom vestido
não alegra as poetisas
ajuda bastante


6
Nasci em Portugal
não me chamo Adilia


7
Sou uma personagem
de ficção científica
escrevo para me casar

(LOPES, 2014, p. 291)



LOPES, ADÍLIA. Dobra: Poesia Reunida, Lisboa, Assírio & Alvim, 2014.

Os namorados pobres

O namorado dá
flores murchas
à namorada
e a namorada come as flores
porque tem fome

Não trocam cartas
nem retratos nem anéis
porque são pobres

Mas um dia
têm muito medo
de se esquecerem
um do outro
então apanham
um cordel
do chão
cortam o cordel
e trocam alianças
feitas de cordel

Não podem
combinar encontros
porque não têm
número de telefone
nem morada
assim encontram-se
por acaso
e têm medo
de não se voltarem
a encontrar

O acaso
não os favorece

Decidem nunca sair
do mesmo sítio
e ficarem sempre juntos
para não se perderem
um do outro

Procuram um sítio
mas todos os sítios
têm dono
ou mudam de nome

Então retiram
dos dedos
os anéis de cordel
atam um anel
ao outro
e enforcam-se

Mas a namorada
tem de esperar
pelo namorado
porque o cordel
só dá par[a] um
de cada vez

O namorado
descansa à sombra
da figueira
e a namorada
baloiça
na figueira

O dono da figueira
zanga-se
com os namorados pobres
porque julga
que estão a roubar figos
e a andar de baloiço

Adília Lopes, “Dobra” Poesia Reunida, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009.

puta II

E você pensa, o que haveria por baixo da superficie disso que pode ser removido?, aí se encontraria a satisfação de uma pele inteiramente nova, um sorriso luminoso e um peito que inspira uma torrente de orações, obrigando o mundo a rastejar sob sua irradiação, aí se poderia ver um happy end com o sol se pondo, o céu atravessado de longos boás de plumas cor-de-rosa, ou então não haveria absolutamente nada, ainda menos que as veias e a assimetria, uma cratera mais funda que a decepção, a derrota da merda que não conseguiu se transformar em ouro e se tornou outra coisa, jamais vista, a desolação de um corpo desertado por si mesmo, uma charcutaria cujo nome é interdito, eu não sei nada mas isso não poderia acabar assim, certamente não, não ainda, o que aí encontraríamos sempre poderia ser removido, camada por camada, alguma parte do corpo a perder, a deportar, a anoréxica cavando sua barriga, cavando sua tumba, e não comece a pensar que há algo de excepcional nisto, não, milhões de mulheres fazem de seus corpos uma carreira, da alimentação uma arte, a maestria de suas bocas sobre pedaços de frutas tão pequenos que são de fazer chorar, e sobretudo a mensagem que elas lançam as outras, olhem para mim e vejam como vocês são gordas, olhem e vejam essas bundas caídas, isso que escapa pelos lados sacudindo com o ritmo da caminhada, que horror!, quanto peso é necessário suportar para existir!, geralmente as mulheres têm demais o que elas têm, elas são demais o que elas são, encravadas em seu sexo e no que é dito sobre ele, incapazes de reinventar suas histórias ou de pensar a vida para além das enquetes de revistas de moda, inesgotavelmente alienadas quanto aquilo que elas acreditam que devem ser, bonecas que gozam quando querem que elas gozem, bonecas que têm tal cintura, tal corte de cabelo, que não querem nada e que querem sempre mais, que se masturbam por qualquer razão e que nunca estão satisfeitas, que se preocupam somente em excitar os homens, sem outro objetivo na vida a não ser se olhar no espelho e se comparar com as outras, com suas bundas e seus peitos para verificar se são maiores, piores, falar dos homens e de outras bonecas, passar da cama ao cabeleireiro à maquiadora à academia à butique à manicure ao regime ao cirurgião ao strip-tease e mais uma vez à cama, ao dinheiro vindo dela, da putaria como objetivo, da fascinação por si mesma e da inveja das outras, enfim tagarelando sobre tudo isso, o cabeleireiro a maquiagem a ginástica para a bunda os seios pequenos demais ou caídos demais a butique a manicure o regime o cirurgião o strip-tease e a foda, sim, uma mulher é tudo isso, é só isso, infinitamente deprimente, uma boneca, uma smurfette, uma puta, um ser que faz de sua vida uma vida de larva que apenas se mexe para que outros a vejam se mexer, que age apenas para mostrar que age, e não acabou pois é preciso que ela seja a única de seu gênero para que fique feliz, a única smurfette do vilarejo em meio a cem smurfs, nem mãe nem filha de ninguém, pura coquete que existe apenas por seu coquetismo, a representante da raça daquelas que não são nem mãe nem filha, que só estão ali para excitar e continuamente se assegurarem de que elas podem excitar, para o grande prazer de todos pois os homens estão pouco se fodendo se são mães e filhas, eles querem poder foder todas, mesmo suas mães e suas filhas, eles querem poder pensar nelas como a smurfette que ri ao se ver tão bela e tão loira no pequeno espelho que ela sempre tem à mão por medo de ficar sozinha, sim, uma mulher é antes de tudo um sexo suscetível a excitar pois um sexo nunca é excitante por si mesmo, isso exige trabalho, trabalho de uma vida inteira, até a morte, pois mesmo velhas e repugnantes as mulheres se recordam do tempo em que elas não eram assim, quando elas podiam viver até a loucura suas vidas a rastejar sobre o próprio umbigo, a existência de se maquiar empinando a bunda, e o trabalho continua na lembrança que também buscamos maquiar.

Nelly Arcan, Puta, pp. 42-43.

puta

No bando que compõe meus clientes, há um segundo Michael que já foi um Jack e que queria sem dúvida apagar seus rastros mudando de nome, como se pudéssemos ser esquecidos em razão do nome, como se os nomes interessassem às putas, no final das contas talvez tenha se esquecido do nome falso que ele mesmo havia se dado, talvez um dia ele tenha cedido a um capricho antes de aparecer à minha porta porque estava cansado de ser reduzido a uma única sílaba, porque queria experimentar a frieza com que eu sempre o tratei, e esse Michael sempre chega com as roupas pretas, o chapéu e o casaco que o caracterizam como judeu, eu o batizei secretamente de corvo de Sabá, eu o batizei assim por causa da aura fúnebre que o envolve, de seu nariz de bico de águia e sobretudo de seus pequenos olhos flamejantes dos quais não conseguimos desviar, o Michael que arrasta seu judaísmo entre as pernas das putas que não são judias, sobretudo das que não o são, ele deve cuidar para que a comunidade não saiba que é possível ficar de pau duro para além das leis de Javé, que a aventura pode ser procurada em todo e qualquer lugar e até mesmo no ventre de jovens góis, acredite em mim, ele me fascina, meu rabino que vem quase todos os dias com cachos atrás das orelhas e sua camisa da qual pendem grandes cordões amarelos, pequenos fios trançados que servem para não sei qual prática de seu culto, a respeito do qual não sei quase nada além dos pequenos chapéus redondos que cobrem a calvicie e da culinária kosher, das orações que são lamuriadas perante um muro de pedra e da circuncisão, ele me fascina porque me lembra Moisés, o homem de minha catequese e da bíblia de meu pai, ele me lembra Moisés com sua longa barba branca de velho sábio, parado ali com sandálias de couro que pisam sobre a areia do deserto e com jeito de quem sabe de tudo, o céu e o mar para abrir um caminho, parado ali com a dignidade de patriarca designado pelo dedo de Deus, o homem de todas as virtudes incumbido de guiar a humanidade em direção à Terra prometida, em direção a este quarto onde espero por meus clientes, em direção à minha cama, a mim, onde todos os povos se reúnem, os japoneses e os indianos, onde se ajoelha a multidão de homens que me mostram os paus, quanto a mim, eu sou a eleita e muito mais do que isso, eu sou a promessa no horizonte, o tempo de pegá-los com minha boca e de reenviá-los a seu deus, até que eles se recomponham e voltem às suas vidas em que pensam que são os únicos e os escolhidos, que estão no caminho certo, no mesmo caminho daqueles que detêm a verdade, penso em Moisés que bravamente suportava a escuridão da noite e a tempestade, carregando nos braços as tábuas da Lei como se carrega um recém-nascido oferecido ao sacrifício, sim, Michael é esse Moisés em torno do qual os raios caem como se o inferno pudesse vir do céu, como se a danação fosse rachar a cabeça das pessoas, os grandes clarões brancos que desvelam o povo do inicio dos tempos, o povo dos ídolos, o Bezerro de ouro que regia a celebração, Moisés, pai de todos os pais que dizem ter dormido com sua serva porque sua mulher era estéril, embora não seja certo que Moisés tenha tomado a própria serva, talvez se trate de Abraão ou mesmo Noé, pouco importa, trata-se de um homem entre homens de longas barbas brancas e jeito de velho sábio, um homem entre homens que de longe prefeririam as putas as suas mulheres, que honrariam a Deus em meio à putaria, sim, essa serva tinha um nome, ela se chamava Agar, ela tinha um nome, mas não basta ter um nome para estar em seu devido lugar, não basta ser citada na Biblia para não ser puta, se eu tivesse sido essa outra mulher, Sara, juro que os teria matado com minhas próprias mãos, os dois, eu os teria matado com a raiva do Mar Vermelho e das sarças ardentes, eu teria feito isso bem antes que eles se tocassem, bem antes que o sexo do velho corvo encostasse no da jovem puta, e em seguida me voltaria ao céu gritando para que eu fosse enforcada, crucificada, para que eu morresse por ter sido traída, mas que tipo de deus é você para jogar os homens nos braços de suas servas e para deixar as servas servirem de putas?, e se, ao contrário, eu fosse a serva, eu teria me matado, teria desafiado Deus a me fulminar, a me transformar em estátua de sal para deixar a humanidade fora desse crime, para que, num outro lugar, a História pudesse ser diferente, na vida dos pais e das mães que caminham de mãos dadas assegurando-se de que a serva caminha atrás, na vida das crianças que sabem quem são seus pais e para que servem as servas.

Nelly Arcan, Puta, pp. 91 -92.